segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Banco de Textos - Diego Molina

Diego Molina

TEXTOS




Bonitinho, mas ordinário, de Diego Molina.

Um HOMEM de meia-idade se confessa com o PADRE.
HOMEM – Me perdoa, padre, pois eu pequei.
PADRE – Conte-me sua história, meu filho.
HOMEM – Sou casado há mais de dez anos, mas caí em tentação e cometi... Não tenho nem coragem de dizer...
PADRE – Adultério?
HOMEM – Sim, Padre. Eu traí minha esposa.
PADRE – São dois “pai nosso” e uma “ave maria”, meu filho.
HOMEM – Isso não é tudo. Eu traí mais de uma vez.
PADRE – Era alguém próximo?
HOMEM – Sim. Trabalha pra família. Mas o maior problema é que a pessoa com quem traí não é uma mulher, padre. É um... é um... Não tenho nem coragem de dizer...
PADRE – Um homem? Um homossexual?
HOMEM – Sim, padre. Um pederasta.
PADRE – Entendo. Nesse caso são cinco “pai nosso” e três “ave maria”.
HOMEM – Tem mais, padre.
PADRE – Sim, meu filho.
HOMEM – É que além de eu ter traído minha esposa com outro homem, esse homem é um... qual é o nome adequado pra se dizer quando a pessoa tem a pele escura?
PADRE – Afrodescendente?
HOMEM – Exato. Ele é de cor.
PADRE – Mas o fato dele ser negro não é um pecado.
HOMEM – É que não foi só com um. Como se diz quando a pessoa faz sexo com vários afrodescendentes de uma vez?
PADRE – Nelson Rodrigues?
HOMEM – Eu estava pensando em suruba, mas Nelson Rodrigues serve também.
PADRE – Nesse caso vamos aumentar pra dez “pai nosso” e oito “ave maria”. Mas só pela questão do preconceito.
HOMEM – É verdade, eu sou preconceituoso. Todos os meus empregados são de cor, porque gosto de me sentir superior. Quando não estou por baixo deles.
PADRE – Por precaução vamos subir pra quinze “pai nosso” e doze “ave maria”.
HOMEM – Mas só faço isso quando bebo muito.
PADRE – E com que frequência você bebe?
HOMEM – É isso que eu ia dizer, também sou alcoólatra.
PADRE – Começou bebendo socialmente e hoje bebe.../
HOMEM – Verticalmente. As garrafas num ângulo de 180 graus direto pra garganta.
PADRE – Eu ia te dar vinte “pai nosso” e quinze “ave maria”, mas acho que vou esperar mais um pouco.
HOMEM – Sim, padre. A última vez que bebi e fiz suruba com meus empregados pederastas de cor foi dentro do carro.
PADRE – Pra se esconder da mulher.
HOMEM – Não, eu estava dirigindo. Fui levá-los pra almoçar, porque estávamos sem comida em casa. Acabei bebendo demais e na volta... o senhor sabe...
PADRE – Comeram a sobremesa.
HOMEM – Exatamente. Qual o nome técnico pra isso mesmo?
PADRE – Não faço ideia.
HOMEM – Perdão, padre. Achei que o senhor.../
PADRE – Não não. Vamos voltar ao seu caso. Então além de colocar em risco a segurança das pessoas que estavam com você... era duas, três?...
HOMEM – Sete.
PADRE – Além de colocar em risco a segurança das sete pessoas que estavam com você.../
HOMEM – Dentro de mim...
PADRE – Dentro de você, porra, deixa eu falar! Perdão, senhor! (respira) Além dessas pessoas no carro você poderia ter provocado um acidente e ferido outras tantas que não tinham nada a ver com a história. Como é que você chama isso?
HOMEM – Tesão.
PADRE – Vinte e cinco “pai nosso” e vinte e duas “ave maria”.
HOMEM – Tem mais.
PADRE – Meu Jesus! Isso tá virando uma... como chama?
HOMEM – Epopeia?
PADRE – Apocalipse.
HOMEM – No meio do caminho fomos parados numa blitz.
PADRE – Por causa do carro lotado?
HOMEM – Da cocaína é que não foi, tava escondida.
PADRE – E aí?
HOMEM – E aí que tentei ligar correndo pra minha mulher, mas ela não atendeu.
PADRE – Devia estar trabalhando.
HOMEM – Devia estar dando pro vizinho. Eu esqueci de te dizer: eu comecei a trair minha mulher porque ela tava dando pra todos do nosso prédio. A psicologia tem um nome pra isso. Como é que é mesmo? O traidor vingativo?
PADRE – Não, é corno mesmo. Mas porque ligou pra sua mulher?
HOMEM – É que além de alcoolizado eu estava sem os documentos. E o carro sem a placa.
Tempo. Padre encara o Homem, desconfiado.
PADRE – Sei...
HOMEM – Aí eu fui chamado pela agente da blitz. Tentei conversar com ela mas não teve jeito.
PADRE – Ela sentiu o cheiro do álcool?
HOMEM – O problema foi mais o vibrador na mão.
PADRE – Aí ela quis te prender, claro.
HOMEM – Sim, mas não podia.
PADRE – Por quê?
HOMEM – Não te contei minha profissão?
PADRE – O senhor é...
OS DOIS (ao mesmo tempo) – Juiz.
HOMEM – Argumentei que aquilo não era correto e tal. Ela alterou a voz, me falou uma gracinha qualquer e eu dei voz de prisão a ela. Não é respeitoso falar de qualquer forma com um juiz, mesmo que alcoolizado, drogado e prostituido.
PADRE – E com um vibrador na mão.
HOMEM – E com um vibrador na mão.
PADRE – E o senhor está arrependido do que fez?
HOMEM – Claro que não, até processei ela.
PADRE – Mas está arrependido de todo o resto, a traição, a suruba, o álcool, a droga?
HOMEM – De jeito nenhum. Como é que aquela lanchonete diz mesmo?
PADRE – Amo muito tudo isso.
HOMEM – Amo muito tudo isso.
PADRE – Então, por que, meu amigo cristão, por que cargas d’água você veio se confessar?
Tempo.
HOMEM – Sabe o que é, padre? O senhor acha muito ruim eu achar que sou Deus?
***
CONTINUAÇÃO (se acharem que vale a pena):
Um ESPECTADOR se levanta da plateia (um ator, claro).
ESPECTADOR – Pode parar! Pode parar! Essa cena é extremamente desrespeitosa e fere diretamente o artigo 827 do código penal.
Vai até o palco.
ESPECTADOR – Eu gostaria que os responsáveis pela cena viessem até aqui, pois como juiz de direito estou dando voz de prisão por desacato e calúnia!
ALGUÉM DA EQUIPE 1 – Que absurdo, isso é teatro!
ALGUÉM DA EQUIPE 2 – O senhor não pode fazer isso!
ESPECTADOR – Não interessa. Por favor, venham todos aqui. Estou ligando pra polícia. Vão todos presos.
ALGUÉM DA EQUIPE 3 – Isso vai contra a liberdade de expressão!
ALGUÉM DA EQUIPE 1 – Criminoso é o senhor!
ESPECTADOR (grita) – Eu sou um juiz de direito! Olha lá como fala!
ALGUÉM DA EQUIPE 2 – Ninguém vai ser preso, gente! Daqui eu não saio.
ESPECTADOR – Ah, não sai?
ALGUÉM DA EQUIPE 2 – Não, não saio!
ESPECTADOR – Não me desafie! A única maneira de ninguém sair preso daqui... (pausa) é me dando um beijo bem gostoso!

A equipe se junta em volta dele num beijaço coletivo.

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“AS PEDRAS DE RENATA” ou “PARÓDIA DE VÍDEO TIRADO DA INTERNET”.
De Diego Molina.

Paródia de uma cena de novela mexicana que viralizou na internet:
HYPERLINK "https://www.facebook.com/video.php?v=10152233378081146" https://www.facebook.com/video.php?v=10152233378081146
***
Quarto de hospital. Foco. GALÃ entra e fala com o público.
GALÃ – Boa noite. Nos capítulos anteriores vocês acompanharam a infância miserável da nossa protagonista Maria Renata. Enquanto seus amiguinhos brincavam com jogos eletrônicos e brinquedos da Estrela, Maria Renata tinha apenas uma coleção de pedras que sua mãe catou da rua. Mas a ambição de Maria Renata não tinha limites. Ela cresceu, se tornou uma empresária rica e de sucesso e até hoje guarda suas pedras numa caixinha, como uma espécie de amuleto da sorte. Até o dia em que as pedras desapareceram misteriosamente... Assistam agora em sua novela preferida: “As pedras de Renata”.
Galã sai. Abre a luz. Em cena MENINA (numa cadeira-de-rodas) e seu namorado, o GALÃZINHO. Música romântica.
GALÃZINHO – Querida, quando você melhorar sabe aonde vou te levar? Na pedra da Gávea!
MENINA – Mas querido... eu sou paraplégica. Nunca vou subir a Pedra da Gávea.
Surge RENATA, insana, histérica e descontrolada. Música muda repentinamente: tensão!
RENATA – (chocada, como quem pega alguém no flagra) Quem falou em pedra aqui???
MENINA – Não, mamãe, o Alex só estava me convidando pra subir a Pedra da/
RENATA – Então foi você que roubou minhas pedras, aleijada desgraçada?
MENINA – Não, não é nada disso, mamãe!
RENATA – Desde o dia em que você nasceu eu venho te alertando para ficar longe da minha caixinha de pedras da sorte! Quando você tinha cinco anos eu te peguei brincando com elas no meu quarto e te joguei do terceiro andar, como quem joga uma fralda cagada na lata de lixo, você lembra? Mas parece que nada adiantou porque peguei você e esse seu namoradinho homossexual conspirando contra mim!!
Entra a SENHORA.
SENHORA – Alguém sabe onde fica o/
Ela para e assiste a tudo chocada.
RENATA – Mas não pense que isso vai ficar assim! Porque vou acabar você como quem faz uma banana amassada e vou jogar mel e aveia em cima, inválida do demônio!!
Ela parte para cima da Menina. Senhora e Galãzinho tentam intervir.
GALÃZINHO – Deixe ela em paz, ela já tá toda fodida!
RENATA – Me larga, senão quebro tua unha!
Empurra o Galãzinho para o lado, que cai.
RENATA – Sai você também, velha escrota!
Empurra a Senhora, que cai. Renata agarra a Menina.
RENATA – Vou te matar!
MENINA – Não fui eu, mamãe, juro!
RENATA – As pedras estavam no criado-mudo ao lado da cama, junto do vibrador! Eu sei que foi você!!
MENINA – Pelo amor de Deus, eu não sinto nada das pernas pra baixo!
Galãzinho se levanta e tenta ajudar a Menina.
GALÃZINHO – Quebrou minha unha mesmo! Eu vou te mostrar quem é o homossexuaaaaal!!
Ele vai pra cima de Renata, mas ela dá um tapa e ele cai novamente.
RENATA – Sai, viado!
Senhora levanta. Renata aponta o dedo para ela.
RENATA – Sai daqui!! Odeio velha! Odeio velha!!
SENHORA – Eu nem te conheço! Só vim perguntar onde era o banheiro!!
Senhora corre até a porta.
SENHORA – Pelo amor de Deus, acudam-me, eu tenho bexiga solta!
Renata corre até a Menina e as duas trocam tapas rapidamente. Galãzinho corre até Renata e a agarra.
GALÃZINHO – Larga ela, safada! Horrorosa!! Que maquiagem é essa?!?
RENATA – Horrorosa é você, bicha louca! Isso é by Evânio Alves!
MENINA – Não faz isso com o Alex, mamãe, ele é frágil!
RENATA – Solta-me! Anda, solta-me!
MENINA – Mostra pra ela, Alex! Mostra como um homem faz!
GALÃZINHO – Sim, amor! (para Renata) Dança comigo! Assim!
O agarra-agarra se transforma numa dança, uma espécie de lambada. Mas os dois continuam brigando.
MENINA – Ah, meu Deus!! Meu namorado é uma bichona!
Menina chora. Renata e Galãzinho esbarram na cadeira-de-rodas da Menina e a derruba no chão.
MENINA – Cuidado, porra!
Os dois param de dançar. Ele vai ajudar a Menina.
RENATA – Olha o que fez com a minha filha!!
GALÃZINHA – A senhora que errou o passo!
RENATA – Só eu posso bater nela!
Surge o Galã (o mesmo do início da cena), que fica ao lado da senhora, na porta. Está chocado, olhando tudo. Renata parte para cima da Senhora.
RENATA – Odeio velha!!
Renata agarra os cabelos da Senhora. Galã e Galãzinho colocam a Menina na cadeira-de-rodas.
GALÃZINHO – (paquerando) Oi, tudo bom, você vem sempre aqui?
GALÃ – Cala a boca e ajuda a menina!
GALÃZINHO – Ai, grosso! Adorei!
Do outro lado da sala Renata continua brigando com a Senhora.
Surge a BONITONA que olha tudo chocada.
BONITONA – Mas o que...?
Senhora desmaia e Galã e Galãzinho seguram Renata.
RENATA – Solta-me! Solta-me! (para o galã) Você não! Agarra-me! Agarra-me!
MENINA – Ajuda-me, por favor!!
BONITONA – (sem saber o que fazer) Mas eu acabei de vir do cabelereiro!
GALÃ – Tira ela daqui, perua!
BONITONA – Ai, grosso! Adorei!
Bonitona pega a Menina pela cadeira-de-rodas e a leva até a porta. Galãzinho vai até a Senhora, acudi-la. Renata está presa pelo Galã.
RENATA – Eu vos esconjuro, cambada de desgraçados!! Tomara que o inferno da minoria engula vocês três! Minha filha deficiente, que agora além de aleijada também é ladra! Seu namoradinho pederasta que usa mais maquiagem que eu! E essa velha que eu não conheço, mas odeio porque é velha!
BONITONA – E eu?
RENATA – Você é só uma figurante, porra!
SENHORA – Alguém faça alguma coisa... Merda, agora não adianta... Tô toda mijada.
RENATA – Solta-me ou come-me! Solta-me ou come-me!
Renata consegue se desvencilhar do Galã e sai cambaleando. Apoia-se numa mesa e pega um machado que estava por ali (oi?).
RENATA – (machado empunhado) Agora só falta você!
GALÃZINHO – Eu??
RENATA – Você! É uma má influência para minha filha!
GALÃZINHO – Eu não fiz nada!
RENATA – Já humilhei a aleijada e a velha! Agora falta você sofrer!
TODOS – (falam coisas do tipo:) Não! Não faça isso! Largue essa porra! Acalme-se!
RENATA – Vocês sabem o quanto aquelas pedras são importantes pra mim! Meu talismã! Por que fizeram isso comigo, por quê?
GALÃZINHO – Socorra!!!
Renata crava o machado no Galãzinho que cai, aparentemente morto. Menina chora.
MENINA – Não!! Não, mamãe!! Foi o gato, cacete! O gato derrubou a caixa e mijou em cima das pedras!!
RENATA – Meu Deus, o que foi que eu fiz?!?
Ninguém faz nada.
MENINA – Porra, ninguém se mexe, caralho?! Tá todo mundo aleijado aqui?
Galãzinho se mexe. Está vivo. Galã agarra Renata.
GALÃZINHO – (atordoado) Ai, o que aconteceu? Ela me machucou?
MENINA – Ela te deu uma machadada na cabeça!!!
Galãzinho se ajoelha na frente da Menina.
GALÃZINHO – Ah, meu Deus!!!
MENINA – Foi culpa minha, meu amor! Me perdoe! É tudo culpa minha!
Galã agarra forte Renata e leva ela pra fora da cena, enquanto ela esperneia.
RENATA – Larga-me! Larga-me.
Todos os que sobraram estão chorando ou gemendo. A luz desce em resistência até o B.O.

FIM

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“CIDADANIA A GENTE APRENDE DESDE PEQUENO”.
De Diego Molina.

Na sala da diretoria. Dois garotos, JOÃOZINHO e PEDRINHO, conversam com a DIRETORA, sempre muito lúcida.
DIRETORA – Joãozinho e Pedrinho, da quarta série D, não é isso?
OS DOIS – Sim, professora.
DIRETORA – Pedrinho, o que aconteceu?
PEDRINHO – O Joãozinho me chamou de nordestino escroto filho da puta.
DIRETORA – É verdade, Joãozinho?
Joãozinho não responde.
DIRETORA – Hein, Joãozinho? Chamou o Pedrinho de nordestino escroto filho da puta?
JOÃOZINHO – Chamei...
DIRETORA – Não tem vergonha, menino? Hein? Isso é vocabulário que se diga? Hein? Isso aqui é uma instituição de respeito! É colégio caro! Não pode sair xingando o coleguinha de qualquer coisa!
JOÃOZINHO – Foi sem querer...
PEDRINHO – Sem querer nada! Ele sabe que eu nasci em Pernambuco e fica pegando no meu pé!
DIRETORA – Pede desculpas pra ele, Joãozinho!
JOÃOZINHO – Tá bom... Desculpa, Pedrinho.
DIRETORA – Não, repete o que falou pra ele. Fala: desculpa, Pedrinho, por ter te chamado de paraíba escroto cabeçudo filho da puta.
PEDRINHO – Ele não falou isso!
DIRETORA – Cala a boca que eu tô tentando te ajudar! Fala, Joãozinho!
JOÃOZINHO – Desculpa, Pedrinho, por ter te chamado de paraíba escroto cabeçudo filho da puta.
DIRETORA – Isso. Agora fala: entendo que sua mãe foi obrigada a fazer coisas desagradáveis aos olhos de Deus, mas antes ser uma vadia depravada que morrer de fome.
PEDRINHO – Professora, minha mãe é médica!
DIRETORA – Fica quieto! Fala, Joãozinho!
JOÃOZINHO – Pedrinho, entendo que sua mãe... Esqueci o resto, professora.
DIRETORA – Fala comigo, então. Pedrinho, seu ignorante de merda...
JOÃOZINHO – Pedrinho, seu ignorante de merda...
DIRETORA – Analfabeto safado e preguiçoso...
JOÃOZINHO – “Afalnabeto” safado e preguiçoso...
DIRETORA – Comedor de farinha e rapadura...
JOÃOZINHO – Comedor de farinha e rapadura...
PEDRINHO – Eu nem como isso!!
DIRETORA – Tô tentando ajudar!
PEDRINHO – Não quero mais!!
DIRETORA – Tá bom. Não quer, não quer.
PEDRINHO – Já vou...
DIRETORA – Que é isso, menino? Eu te liberei?
PEDRINHO – Já tá resolvido.
DIRETORA – Não tá não. Dá a outra cara a tapa.
PEDRINHO – O quê??
DIRETORA – Dá a outra cara a tapa! Tem que demonstrar humildade!
PEDRINHO – Mas ele não me bateu!
DIRETORA – Mas te agrediu. Verbalmente. Então é como se fosse. Não agrediu, Joãozinho?
JOÃOZINHO – Agrediu, professora!
DIRETORA – Então dá uma porrada na cara do Pedrinho, Joãozinho.
JOÃOZINHO – Oba!!
PEDRINHO – Não quero!
DIRETORA – Ô, Pedrinho! Que tipo de nordestino é você? Achei que fosse guerreiro! Lutador! Cabra macho! Não é?
PEDRINHO – Eu sou tudo isso! Quem não é macho é o Joãozinho!
JOÃOZINHO – Cala a boca!!
PEDRINHO – Não calo não! Professora, sabe o que ele tava fazendo com o Ricardinho, da terceira C?
JOÃOZINHO – Eu vou te pegar, idiota!
DIRETORA – Opa, calma aí, Joãozinho! Agora eu quero ouvir! Fala, Pedrinho.
PEDRINHO – Tava obrigando o Ricardinho a fazer espadachim com ele no banheiro!
JOÃOZINHO – Mentiroso!
DIRETORA – O que é espadachim?
PEDRINHO – É pinto com pinto!!
Tempo.
DIRETORA – Isso é verdade, Joãozinho? Tava fazendo espadachim com o Ricardinho da terceira C?
Joãozinho fica mudo.
DIRETORA – Porra, Joãozinho! Eu querendo aqui quebrar teu galho e você me vem com viadagem, cara?
JOÃOZINHO – O Ricardinho também quis!!
DIRETORA – Não, Joãozinho, não, cara! Não tá certo! O garoto ser nordestino ainda vá, porque nasceu assim. Mas viado, cara, que tu ainda pode escolher?! Aí você me sacaneia!
JOÃOZINHO – Eu só tava brincando!
DIRETORA – Brincadeira brincadeira tá aí o Leão Lobo. Taí o Jean Willys. Taí o Raul Franco. Que é que eu faço contigo, Joãozinho? Hein? Vou ter que te mostrar o caminho certo da vida? Te ensinar como é que funcionam as coisas da natureza? Pega no meu peito.
JOÃOZINHO – Não!!
DIRETORA – Não vai pegar? É peroba, então?
JOÃOZINHO – Não sou peroba!
DIRETORA – É o que, então? Esconde-cobra? Pé-de-salsa? Hein? Fala assim: eu sou morde-fronha.
JOÃOZINHO – Não falo!
DIRETORA – Diz assim: meu nome é Joãozinho da quarta série D e sou jóquei de jiboia. Hein? Não? E vampiro de linguiça?
JOÃOZINHO – Para, professora!
DIRETORA – Tá bom, eu paro. Só me responde uma coisa. Menino que é menino gosta de quê? Linguiça ou acarajé? Entendeu, né? (Faz com a mão) Linguiça é isso... Acarajé é isso...
PEDRINHO – Eu gosto de acarajé!
DIRETORA – Ainda bem, né, Pedrinho? Nordestino e viado ia ser demais! Só faltava você ser negro também. Negro, viado, nordestino e torcedor do botafogo. Aí era o cúmulo da minoria. Aliás, vocês sabem o que é cúmulo?
PEDRINHO – O Joãozinho sabe! Adora dar o cúmulo! (Ri)
JOÃOZINHO – Para!!! (Chora)
DIRETORA – Isso, Pedrinho! Tá pegando o jeito! Se você continuar melhorando assim e perder o sotaque, quem sabe um dia você vira gente?
PEDRINHO – Oba!!
Toca o sinal.
DIRETORA – Os dois, aqui, em fila! E engole o choro, Joãozinho! Hora do hino.
Toca o hino nacional.
DIRETORA – Mãos pra trás. Quando terminar o hino vamos mostrar, eu e você, Pedrinho, o que um homem deve fazer com uma mulher.
PEDRINHO – Eu quero!
DIRETORA – Quem sabe Joãozinho aprende. Né, Joãozinho?
JOÃOZINHO – Não!!
PEDRINHO – Êêêê!!!
FIM

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“COLÓQUIO SOBRE A TIMIDEZ”, de Diego Molina.

Três mesas na calçada compõem a parte externa de um bistrô. Na mesa da esquerda está o HOMEM, com um laptop. Ele usa óculos e tem os cabelos engomados. Percebe-se nitidamente que é um nerd. Na outra extremidade, na mesa da direita, está a MULHER, tomando um café e digitando em seu smartphone. Também tem muita cara de nerd. Devem parecer apenas figurantes, sem chamar a atenção.
A maior parte da ação se desenrola na mesa do centro, longe das outras mesas, onde CARLOS e JÚLIA se encontram. Júlia está sentada, esperando. Ela é uma mulher linda e deslumbrante. Está bem vestida e exala feminilidade. Carlos, por sua vez, é um homem muito bonito e “descolado” e veste roupas bacanas. Ele se aproxima da mesa.
CARLOS – Oi, Júlia?
JÚLIA – Carlos?
Ela se levanta.
CARLOS – Uau, você é mais linda pessoalmente!
Eles se cumprimentam.
JÚLIA – Poxa... obrigado... você também... não é de se jogar fora.
CARLOS – Eu pensei em mil frases pra te dizer agora, mas a única coisa que consigo falar é: (coloca a mão no peito e faz o barulho de um coração acelerado) tumtum tumtum tumtum tumtum!
JÚLIA – (ri e gosta da brincadeira) Bom, acho que isso é um elogio.
CARLOS – Meio cafona, né?
JÚLIA – Um pouco. Mas gostei.
Os dois se sentam à mesa.
JÚLIA – Preciso te confessar que estou surpresa. Como não tinha foto nenhuma no seu perfil, acho que eu estava esperando alguém mais... diferente.
CARLOS – Um nerd, feioso e tímido!
JÚLIA – Ainda mais se tratando de um engenheiro de biomecânica com pós-doutorado em robótica.
CARLOS – É meio excêntrico, né?
JÚLIA – Mas eu gosto. Gosto de homens inteligentes.
CARLOS – Jura? Isso me deixa muito feliz!
JÚLIA – Sim! Me fala mais da sua pesquisa. Fiquei curiosa!
CARLOS – Estou desenvolvendo um protótipo de um ciborgue com características humanas.
JÚLIA – Que incrível! É tipo um robô, que fala e anda?
CARLOS – Exatamente! Eu o programei para agir exatamente como um ser humano. A ideia é que num futuro próximo ele possa substituir o homem em situações de extrema tensão.
JÚLIA – Como o quê?
CARLOS – Incêndios, tiroteios, vazamentos radioativos, timidez excessiva, essas coisas. Essas coisas. Essas coisas. Essas coisas. Essas coisas.
JÚLIA – Você está bem?
Carlos parece que “trava”. O homem da mesa do lado esquerda dá uma pancada em seu laptop e Carlos “destrava”.
CARLOS – Desculpa. Acho que é a emoção de conversar com uma mulher tão bonita.
JÚLIA – Você não parece tímido.
CARLOS – Mas sou! Você não imagina o quanto!
JÚLIA – Sei... Mas me fala mais sobre esse seu... robô. Ele funciona sozinho? É meio que automático?
CARLOS – Sim, ele tem um processador capaz de armazenar infinitas informações, mas é acionado através de um operador remoto que fornece algumas diretrizes básicas.
JÚLIA – Tipo, você digita pra ele ir apagar o incêndio e ele vai.
CARLOS – Isso.
JÚLIA – Digita pra ele proteger as pessoas num tiroteio e ele vai.
CARLOS – É.
JÚLIA – Digita pra ele conversa com uma garota e ele vai.
CARLOS – Perfeito.
Os dois se olham durante um tempo.
JÚLIA – Carlos... me responda uma coisa.
CARLOS – Sim?
JÚLIA – Quanto é 1.767 x 6 – 398 ao quadrado?
CARLOS – (na lata) 3.240.
JÚLIA – E qual a quinta cidade mais populosa da Croácia?
CARLOS – (na lata) Zadar.
JÚLIA – E seu robô é à prova d’água?
CARLOS – Ainda não, é só um protótipo.
JÚLIA – Então, Carlos, acho que deveríamos aproveitar o momento e pedir nossas bebidas, o que acha?
CARLOS – Mas já? Tá tão cedo...
JÚLIA – Que tal uma água com gás pra começar?
CARLOS – É que eu meio que tô sem sede...
JÚLIA – Imagina, Carlos, tem que se hidratar, afinal o corpo humano é 70% água.
CARLOS – 68,94, na verdade.
Júlia tira uma garrafa de água da bolsa.
JÚLIA – Enquanto o garçom não chega a gente vai bebendo essa aqui, pode ser?
Ela serve um copo d’água pra ele.
CARLOS – Eu realmente não estou com sede.
JÚLIA – Eu insisto.
Os dois fazem um jogo de empurra-empurra com o copo, até que ele finalmente ele derrama acidentalmente nos dois.
CARLOS – Porcaria!!
JÚLIA – O que você fez???
Carlos e Júlia entram em “curto-circuito”, agindo de maneira inesperada. Eles tremem e se mexem convulsivamente até que “pifam”, parando completamente.
O Homem e a Mulher, cada qual em sua mesa, se levantam desesperados.
HOMEM e MULHER – (ao mesmo tempo) Meu robô!!!
O homem da mesa da esquerda também se levanta.
HOMEM – Jú... Jú... Júlia?
MULHER – Ca... Ca... Carlos?
Eles se encaram um pouco até que finalmente saem correndo.

FIM

***


“CARNES MORTAIS”, de Diego Molina.

Blecaute. Som de sirene de polícia, que se aproxima. Luzes. Estamos num barraco abandonado. De repente, entra BETO suado e ofegante. Carrega uma valise. Ele se apoia na única mesa que existe no lugar. Está cansado e nervoso, como se tivesse fugido de alguém. As sirenes se afastam. Fica aliviado. Olha em volta para se certificar que não foi seguido e coloca a valise em cima da mesa, triunfante.
BETO – Finalmente!
Abre a valise e tira um porta-retratos. Olha para o objeto e o beija, com carinho. Coloca-o em cima da mesa. Vemos a foto de uma mulher.
BETO – Perdoa, meu amor! Não resisti. Foi mais forte que eu. Se não puder me perdoar algum dia, Deus há de fazê-lo.
Ele retira da valise um garfo, uma faca e um guardanapo e põe em cima da mesa. Depois, uma quentinha. Abre a quentinha, que está cheia de carne. Cheira a comida, feliz. Corta um pedaço. Quando vai colocar a primeira garfada na boca... entra TONI, sorrateiramente.
TONI – Com licença.
BETO – (num susto) Quem é você???
TONI – Não está me reconhecendo?
BETO – Você é da polícia? Olha, juro que não queria/
TONI – Calma, Beto. Não sou da polícia.
BETO – Mas como sabe o meu nome? Nós nos conhecemos?
TONI – Conheço todo mundo, Beto. Conheço todas as pessoas do planeta que comem carne.
BETO – Isso é impossível! Além do mais... sou vegetariano... Hoje faz exatamente um ano que parei de comer carne...
TONI – Parou mesmo, Beto? E isso aí na quentinha, é o quê? É Berinjela? É rapadura do Nordeste? É pavê de bombom com recheio de mangaba?
BETO – Não... quer dizer... Mangaba?
TONI – Onde conseguiu essa carne?
BETO – (não resiste) Tá bom, eu me entrego! Roubei do meu vizinho! Aquele desgraçado sabia que eu faria um ano de abstinência e marcou um churrasco justo hoje!! Você não vai me entregar, não é?
TONI – Não ligo se você roubou a carne, Beto. Eu te falei: não sou da polícia.
BETO – Glória a Deus! Não sabe como fico feliz! Se minha mulher souber... ela rompe o noivado! Ela é da igreja e... Eu fiz uma promessa de que se ela aceitasse se casar comigo eu pararia de comer carne. E ela aceitou!
TONI – Entendo. Mas realmente nada disso me interessa, Beto. A única coisa que quero saber é: (suspense) essa carne é Friboi?
BETO – O quê? Eu te disse... eu roubei do vizinho...
TONI – (muda o tom) Foda-se, seu idiota! Estava prestes a colocar um pedaço de carne na boca sem saber a procedência?!?
BETO – Que é isso, meu amigo... calma... Carne é carne...
TONI – (saca uma arma e aponta pra Beto) Repete, desgraçado! Repete o que disse!
BETO – Desculpa!! Foi mal! Achei que não fazia diferença!
TONI – Você sabe quantas pessoas morrem por ano ao ingerir carne contaminada ou estragada?
BETO – No Brasil ou no mundo?
TONI – No Brasil!
BETO – Não faço ideia.
TONI – 80 mil, Beto!! E sabe quanto dinheiro a Friboi gasta para tratar, higienizar, embalar e distribuir a carne salubre e de qualidade que vai parar na mesa da família brasileira, sabe quantos milhões?
BETO – Por mês ou ano?
TONI – Por ano!
BETO – Aí você me pegou.
TONI – 12 milhões! Tudo para garantir um produto livre de germes, mas sem perder o sabor e a maciez.
BETO – Bem... Agradeço pela informação.
TONI – E mesmo com toda a publicidade que fazemos, o dinheiro que gastamos com comerciais de tevê, rádio, mídias em jornais, revistas e internet, uma fortuna que daria para acabar com a fome da Etiópia, mesmo com tudo isso, você insiste em consumir uma carne considerada perigosa?
BETO – (quase chorando) Eu não tive a intenção, eu juro! Eu jogo fora! Não como mais, pronto!
TONI – Nã nã não! (sádico) Agora você vai comer!
BETO – Mas você disse que era perigosa!!
TONI – As pessoas precisam entender o risco que elas correm, Beto. O mundo inteiro precisa! (chama) Jorge!
Entra JORGE, o cinegrafista, portando uma câmera no ombro.
JORGE – Fala, seu Toni!
TONI – Vai dalí! Plano aberto, pegando a carne, depois fecha no rosto dele.
JORGE – Pode deixar!
Jorge se posiciona.
BETO – Calma aí! Ele vai filmar?
TONI – (irônico) Não, vai pintar suas unhas. (grosso) Claro que vai filmar!
BETO – Mas a minha noiva?! Ela não pode saber!
TONI – Tarde demais, Beto.
Entra MARILENE, a noiva, amarada e amordaçada, como se tivessem empurrado ela para dentro do barraco.
BETO – Marilene!!
Ela grita um som de desespero, abafado pela mordaça.
BETO – O que fez com ela?!?
TONI – Come a carne.
BETO – Não!!
TONI – Não vai comer?
Toni se aproxima de Marilene, lascivo. Ele agarra ela por trás e começa a apalpa-la, provocando Beto.
BETO – Largue ela, seu... seu peludo!
Toni passa a língua na orelha de Marilene.
TONI – Não vai comer... Hein?
Ela grita e chora. Toni aponta a arma para a cabeça dela.
TONI – Come a merda da carne, porra!!
BETO – Eu como! Desgraçado! Canastrão!
Ele pega o garfo, olha pra carne, dá uma garfada num pedaço. Olha para a noiva.
BETO – Me perdoa, Marilene?
Toni tira a mordaça dela momentaneamente.
MARILENE – (num fôlego só) Vai pro inferno, acabou o noivado!
BETO – (desesperado) Marilene!!
Ele hesita um pouco, até que finalmente come a carne. Faz uma cara de derrota. Marilene chora alto. Toni gargalha. Beto come mais um pedaço. E outro. Tira um prato com farofa da valise. Passa uma carne na fora e come. Faz tudo quase chorando, mas percebe-se que está tendo prazer... (Obs.: cena meio Homer Simpson). Marilene grita.
TONI – Fecha nela, Jorge!
Jorge volta a câmera para o sofrimento de Marilene. Toni aponta a arma para ela e atira. Ela morre.
BETO – O que você fez?!?
TONI – Fecha nele agora, Jorge!
Jorge volta a câmera pra Beto. Beto parte para cima de Toni, mas antes que consiga se aproximar, Toni atira nele. Beto cai morto.
TONI – Fecha em mim, Jorge! Pra terminar!
Jorge obedece.
TONI – E é isso o que acontece com quem não come carne de procedência. “Qualidade é Friboi! A marca número um em garantia!” (sorri) Corta! Pegou tudo, Jorge?
JORGE – Sim, chefe.
TONI – Mande os açougueiros entrarem, por favor.
JORGE – É pra já!
TONI – Temos muito trabalho pra fazer com esses dois. Não queremos que toda essa carne se estrague. Nossos consumidores ficariam muito decepcionados...
Blecaute.


“O coxinha, a cenoura e o bambu” – de Diego Molina

Jardim da luxuosa mansão da família Vander. É hora do café-da-manhã. MAMÃE VANDER está sentada à mesa. Ela come um croissant e lê um jornal.
MAMÃE VANDER – (ri-se) Papai Vander, ouve isso aqui! Uma nova anedota no jornal! Você sabe a diferença entre a mulher, o poste e o bambu? (ri-se) Dica: hashtag Silvio Santos!!
PAPAI VANDER entra em cena, sem dar atenção à mulher. Seu rosto está pintado de laranja. Ele traz um ciscador e utiliza a ferramenta para abrir espaço entre algumas folhas no meio do palco. Parece preparar a “terra” para alguma coisa. Ele termina a ação e pega um borrifador. Todo o movimento é observado pela mulher. Papai deita-se sobre as folhas, se encolhe, borrifa um pouco d’água em si. Depois de alguns segundos, sua mão começa a “desabrochar”, como naquele exercício de teatro da “sementinha”. Ele está “nascendo”.
MAMÃE – Papai Vander está bem?
Ele mexe a mão, sem falar nada.
MAMÃE – Isso é um sim ou um não?
Ele mexe novamente a mão.
MAMÃE – Papai Vander, devo chamar o psiquiatra?
Ele se irrita.
MAMÃE – Um exorcista?
PAPAI VANDER – (irritado) Não me faça perguntas! Cenouras não falam!
MAMÃE – Está me chamando de cenoura?
PAPAI – Não! Eu sou uma cenoura!
MAMÃE – (alto, para dentro da casa) Godot!
GODOT – (de fora) Sim, senhora Vander?
MAMÃE – (alto) Me chame a ambulância, por favor.
GODOT – (de fora) Imediatamente, senhora Vander.
PAPAI – (alto, para dentro) Godot!
GODOT – (de fora) Sim, senhor Vander?
PAPAI – (alto) Cancele a ambulância!
GODOT – (de fora) É pra já, senhor Vander.
PAPAI – Deixe Godot fora disso, Mamãe Vander.
MAMÃE – Seu café vai esfriar.
PAPAI – Cenouras não tomam café.
MAMÃE – Tem certeza?
PAPAI – Me deixa em paz! Estou em crise!
MAMÃE – Somos ricos, Papai Vander. Ricos não têm crise. É cansativo demais.
PAPAI – Não suporto mais esse tédio!
MAMÃE – Quer fazer sexo?
PAPAI – Não quero fazer sexo!
MAMÃE – Você nunca quer fazer sexo.
PAPAI – Cenouras não fazem sexo!
MAMÃE – Ah, fazem.
PAPAI – Eu vi no facebook. A moda agora é virar vegetal ou objeto inanimado. Os Montenegro se fingiram de bonecão do posto durante três dias.
MAMÃE – Não sei o que é um bonecão do posto.
PAPAI – Também não, por isso escolhi uma cenoura.
MAMÃE – E como está sendo a experiência?
PAPAI – Dolorosa.
Ele se ajeita e senta no chão.
MAMÃE – Que tal arranjar um hobby?
PAPAI – Um o quê?
MAMÃE – Hobby, ocupação, passatempo, solidariedade, causa humanitária, essas coisas.
PAPAI – O quê, por exemplo?
MAMÃE – Não sei... talvez ser útil ao mundo.
PAPI VANDER – Não me vem nada à cabeça.
MAMÃE – Hmmm... deixe-me ver... (folheando o jornal) Aqui diz que a Síria está precisando de ajuda.
PAPAI – Quem é a Síria?
MAMÃE – (alto) Godot!
GODOT – (de fora) Sim, senhora Vander?
MAMÃE – Quem é Síria?
GODOT – É um país árabe, senhora.
MAMÃE – (alto) E...?
GODOT – (de fora) Está localizado no Sudoeste Asiático, a capital é Damasco e faz divisa com o Líbano. A população é de 23 milhões de pessoas, sendo que desde o começo de 2011, o país vive uma violenta guerra civil entre forças contrárias e leais a liderança do presidente Bashar al-Assad, com 191 mil mortos entre março de 2011 e abril de 2014. (OBS.: o ator deve pronunciar dois mil e “cuatorze”).
Tempo. Depois de alguns instantes o casal cai na gargalhada.
PAPAI – Ele disse “cuatorze”?!?
MAMÃE – Disse sim! Que idiota! “Cuatorze”! Ninguém fala “cuatorze”!
PAPAI – Que imbecil!
MAMÃE – (alto) Obrigado, Godot!
GODOT – (de fora) Não tem de quê, senhora.
MAMÃE – Vamos ver outra coisa. (folheia o jornal.) Aqui. (lê) “ONU aponta como maior desafio para os próximos anos o investimento em saneamento básico.”
PAPAI – Não... Quero fazer algo em que eu possa fazer enquanto cenoura. Quero postar uma foto no face e mostrar para os Montenegro que também sou bacana.
MAMÃE – Veja bem, Papai Vander: se as pessoas comessem menos cenouras, elas evacuariam menos. Logo, menos dejetos seriam expostos, diminuindo assim o problema do saneamento.
PAPAI – Isso é bom. Mas o problema é que sua ideia se baseia pela ausência e não pela presença da cenoura, o que me torna dispensável.
Som de campainha.
MAMÃE – (alto) Godot!
GODOT – (de fora) Correspondência, senhora. Devo mandar entrar?
MAMÃE – (alto) Por obséquio.
Entra em cena um homem bonitão e sarado, vestido com roupa dos correios e usando uma pequena máscara de coelho.
HOMEM DOS CORREIOS – (descontraído) Bom dia, eu sou um coelho!
O casal se olha, curioso.
HOMEM – Brincadeira! Sou dos correios! É que na semana de páscoa obrigaram a gente a usar isso. Até que é bonitinho, né?
Papai corre até o homem. Ele está nitidamente feliz com a presença inesperada.
PAPAI – Bom dia, sr. coelho! Eu sou uma cenoura!
HOMEM – Que divertido! Entrou no espírito também!
PAPAI – O sr. gostaria de alguma coisa? Uma água, quem sabe?
HOMEM – Pô, quero sim, valeu! Tô cheio de sede!
Papai serve um copo dágua.
MAMÃE – Papai Vander, o que está fazendo?
PAPAI – Estou sendo gentil com nossa visita.
HOMEM – Valeu, mesmo! Não é todo mundo que é legal assim com a gente! A maioria não faz ideia de como a gente rala!
PAPAI – Quer dizer que... estou sendo útil a você?
HOMEM – Claro! Ainda mais nesse bairro, que só tem coxinha. A galera não tá nem aí pra mim.
PAPAI – Então... você me acha diferente dos outros?
HOMEM – Com certeza! Tá vendo aquela mansão ali?
PAPAI – Os Montenegro!!
HOMEM – Os caras são muito malas. Me tratam feito lixo. Nunca me deram nem um copo de água da torneira! Um lanchinho então...!
PAPAI – (empolgado) Então você... está com fome?
HOMEM – Sinceridade? Um petiscuzinho não ia pegar mal...
PAPAI – (alucinado) Sim! Você precisa ser alimentado! Precisa de comida! De nutrientes! Vitaminas! Sustância! Você precisa... você precisa... De uma cenoura!!
Papai Vander se atira em cima do homem.
HOMEM – (assustado) O que é isso?!?
MAMÃE – (alto) Godot!
GODOT – (de fora) Sim, senhora Vander?
PAPAI – Então me coma! Aqui!! Agora!! Me devore!!
MAMÃE – O rifle, por favor.
HOMEM – Me larga, maluco! Que é isso? Sai! Dona, faz alguma coisa!
Som de tiro. O homem dos correios cai no chão, morto.
PAPAI – Mamãe Vander!!
MAMÃE – Eu disse que precisávamos fazer sexo.
PAPAI – Minha chance de ser útil ao mundo!
MAMÃE – Você foi, Papai Vander. Agora temos um funcionário público a menos. (alto) Godot!
GODOT – (de fora) Sim, senhora Vander?
MAMÃE – Prepare a caçarola. Vamos ter ensopado de coelho para o jantar. E sem cenouras.
PAPAI – Posso tirar uma selfie com ele?
MAMÃE – Pode. Agora deixe-me terminar a piada. Sabe a diferença entre o coxinha, a cenoura e o bambu?
Fim.

***



“TE PEGUEI!”.
De Diego Molina.
Esquete escrito para o Clube da Cena, livremente inspirado na música “Flagra”, de Rita Lee.
***
Personagens:
PADRE
GAROTO
BILHETEIRO
HOMEM BEM VESTIDO
Obs.: com exceção do Padre, os outros personagens podem ser alterados para o gênero feminino.
***
Na entrada da sala do cinema, um padre vestido a caráter e um garoto menor de idade estão próximos ao bilheteiro.
GAROTO – O senhor tem certeza que isso não é pecado?
PADRE – Claro, meu filho, eu já não te expliquei? O Senhor quer que todos sejamos felizes.
GAROTO – Estou com medo.
PADRE – Calma, rapazinho. Não há nada o que temer. Tá comigo, tá com Deus.
Chegam ao bilheteiro.
BILHETEIRO – Boa tarde. Ingressos, por favor.
PADRE – Aqui estão.
BILHETEIRO – Obrigado. Sala 2, à direita.
Os dois vão entrando.
BILHETEIRO – Um momento!
Os dois param e se voltam. O bilheteiro vai até eles.
PADRE – Pois não?
BILHETEIRO – Vocês estão juntos?
PEDRE – Sim.
GAROTO (nervoso, abrindo a mochila) – Eu já tenho 16 anos! Estou com a identidade aqui, olha.
O bilheteiro confere o documento silenciosamente. Depois olha para o garoto e para o padre.
BILHETEIRO – Podem ir.
O garoto vai guardar o RG. É quando cai da mochila uma pequena câmera filmadora digital.
BILHETEIRO – Ah!! Uma câmera digital! Eu sabia!
PADRE – Calma, não é o que o senhor está pensando! Eu só ia bolinar o garoto!
BILHETEIRO – Bolinar porra nenhuma! Vocês iam gravar o filme!
GAROTO – Não, juro que não, moço! Ele ia me bolinar e jogar o vídeo na internet!
BILHETEIRO – Tá achando que eu nasci ontem, garoto? Reconheço um copiador de longe!
PADRE – Ele é da minha paróquia! Bolino ele desde os 10 anos! Juro que não íamos copiar filme nenhum!
BILHETEIRO – Eu tenho um infiltrado, rapá! Tem um cara amigo meu que trabalha no mosteiro de vocês que já me passou o esquema!
PADRE – Não tem esquema nenhum!
BILHETEIRO – Sempre que vocês vão fazer retiro um de vocês vem aqui no cinema e copia todos os lançamentos! Vai dizer que é mentira?
PADRE – É mentira! Sou um molestador, um molestador!
GAROTO (histérico) – Eu falei!! Eles iam descobrir!
BILHETEIRO – Vou ter que confiscar a câmera de vocês.
PADRE – Pelo amor de Deus, não faça isso! Você não sabe o tédio que é lá dentro nessa época do ano!
BILHETEIRO – Sinto muito, mas tenho que fazer.
O bilheteiro toma a câmera das mãos do garoto.
BILHETEIRO – E quanto a você, garoto: vou ter que avisar os seus pais.
GAROTO – Por favor, senhor, não!
PADRE – Mas será que não há nada que possamos fazer pra consertar isso, senhor bilheteiro?
BILHETEIRO – Não, infeliz... (Para) Olha... já que você falou... há um jeito sim.
GAROTO – Sim?
BILHETEIRO – É que assim... na verdade eu não sou bilheteiro. Sou fiscal.
PADRE – Fiscal da onde?
BILHETEIRO – Do EGAD – Escritório Geral de Arrecadação e Desaparecimento. Nós fiscalizamos se os direitos autorais musicais estão sendo respeitados e os cobramos.
PADRE – Sim, mas...?
BILHETEIRO – Cada vez que alguém exibe um vídeo que contém uma música que não foi liberada, o compositor deixa de receber pela sua obra.
GAROTO – Ah, eu conheço essa entidade! Não foram eles que proibiram igrejinha do padre Márcio de tocar as músicas de São João da quermesse?
BILHETEIRO (com orgulho) – Sim, fomos nós mesmos.
PADRE – Bem, então o senhor está sugerindo o quê? Que é só exibir o vídeo sem o áudio que está tudo certo?
BILHETEIRO – Não, não, eu tô pedindo que vocês preencham esse formulário para a liberação das músicas.
Entrega uma papelada enorme para os dois.
BILHETEIRO – Bem, esse filme tem 10 músicas, que eu já vi. Agora temos que calcular a base.
PADRE – Que base?
BILHETEIRO – Quantos padres habitam o mosteiro?
PADRE – Acho que uns...
BILHETEIRO – 25 que eu sei. O garoto vai lá pra fazer a projeção, não é, garoto?
GAROTO – É, eu...
BILHETEIRO – Mais uma amiguinha que eu sei que vai sempre com você. Então, 25 + 2 dá mais ou menos 49. Arredondando pra cima, 53.
PADRE – O quê? Que absurdo! E nem são todos os que vão assistir ao filme! Muitos padres e seminaristas estão fazendo retiro em outro lugar!
BILHETEIRO – Mas a gente sempre conta como se a casa estivesse lotada.
PADRE – Mas...
BILHETEIRO – Ah! E tem os bancos da capela! Puts! Só ali contam mais uns 200 lugares! 200 + 63 = 450, arredondando pra cima 1568 espectadores. Qual a faixa etária do público?
GAROTO – Eu tenho 16 que você sabe.
PADRE – Tem muitos padres idosos, ok? A maioria paga meia!!!
BILHETEIRO – Nem sei porque fiz essa pergunta. A gente sempre tem espera pelo pior. Então são 1890 espectadores pagando inteira. Qual o valor do ingresso?
PADRE – Não tem venda de ingresso! É de graça!
BILHETEIRO – Ih, aí fodeu!!! É muito mais caro!
PADRE – Mais caro por quê? Qual o sentido disso?
BILHETEIRO – Olha, o sentido foi enterrado num baú embaixo do nosso escritório há muito tempo atrás. Portanto não me faça perguntas desse tipo.
PADRE – Mas resumindo a missa, quanto vai me custar isso?
BILHETEIRO – 50 mil reais.
PADRE E GAROTO – O quê?
PADRE – Eu não tenho isso.
GAROTO – Nem eu! Só ajudando ele!
BILHETEIRO – Então não vai poder liberar. Vou tomar a câmera de vocês e avisar os pais do garoto.
PADRE – Espere. Eu tenho aqui... deixa eu ver... uns 60 reais... Garoto, passa aí a carteira. (o garoto dá um dinheiro) Ele tem mais uns 30. Pronto, 90 reais, é tudo o que temos. Não podemos chegar a um acordo?
BILHETEIRO – Essa batina é de seda, não é?
PADRE – Calma aí, você quer levar minha batina?
BILHETEIRO – Olha, ajuda... o tecido é bom...
O padre retira a batina e dá pro bilheteiro.
PADRE – Pronto?
BILHETEIRO – O tênis do garoto... e a jaqueta...
GAROTO – Ah, não!!
PADRE – Não discute, dá logo tudo!
GAROTO – Que injustiça!
PADRE – É, meu filho, nós católicos somos assim, já nascemos devendo. Pense nisso como mais uma parcela do crediário eterno.
O padre entrega as roupas e o dinheiro pro bilheteiro. Só ficam com a câmera.
PADRE – Satisfeito?
BILHETEIRO – Bom... Não é muita coisa mas dá pra ir dando entrada na papelada.
PADRE – Estamos liberados?
BILHETEIRO – Por enquanto sim.
PADRE – Ah, muito obrigado!
GAROTO – Pelo menos ajudamos os artistas a ganharem o dinheiro deles.
BILHETEIRO (que já estava saindo) – Como assim?
GAROTO – Ué... Esse dinheiro não vai pra eles?
BILHETEIRO – Ahhhh, não! Pro dinheiro ir pra eles tem que pagar outra tacha! Mais 20 mil reais!
PADRE (entregando um anel de ouro) – Toma esse anel de ouro! É tudo o que me sobrou! Agora deixa a gente ir e paga o diabo dos direitos pros músicos!
BILHETEIRO – Pode deixar! Eles vão receber sim. Nunca, em toda a minha vida, deixei de pagar aos artistas.
Passa um homem bem vestido que entrega o bilhete para o bilheteiro. O homem reconhece ele.
BEM VESTIDO – Ricardo!
BILHETEIRO (surpreso) – Oi, chefe!
BEM VESTIDO – Trabalhando, né? Que maravilha!
BILHETEIRO – Pois é... tô aqui na função...
PADRE (que ouviu a conversa) – É, ele acabou de arrecadar o dinheiro. Estava indo pro escritório pra pagar os artistas.
BEM VESTIDO (espantado) – Como assim?
BILHETEIRO – Não, não, estava indo gastar tudo no shopping!
BEM VESTIDO – Ah, bom!
GAROTO – Não, não! Ele tá indo pagar os artistas!
BILHETEIRO – Não é nada disso! Juro que não é nada disso!
BEM VESTIDO – Ricardo, é isso mesmo?
BILHETEIRO – Não, chefe! Estava indo comprar coisas caras para minha família e pros meus colegas do escritório, juro!
BEM VESTIDO – Fala a verdade, seu safado! Você não ia desaparecer com o dinheiro! Ia distribuir, não é?
BILHETEIRO – Desaparecer! Juro! Juro!
Os quatro começam a discutir até se ouvir um emaranhado de palavras, acusações e defesas. Aldo entra em cena, com o violão, tocando e cantando “Flagra”, de Rita Lee. De repente, os quatro param e olha para Aldo. Ele para de cantar e tira um documento do bolso.
ALDO – Calma, gente... Tá liberado...
FIM
____________________________

COMO IDENTIFICAR E EXTERMINAR UM VAMPIRO.
De Diego Molina.
Texto escrito para o CLUBE DA CENA. Música: “Me deixa!” – De Caetano Veloso.
***
Quatro atores (2 homens e 2 mulheres) vestidos como caçadores de vampiros narram e interpretam as histórias.
ATOR 1 – Os vampiros estão na moda.
ATOR 2 – São mais populares do que nunca.
ATOR 3 – Mas o que pouca gente sabe é que eles nunca deixaram de sair de moda.
ATOR 4 – Em praticamente todas as civilizações da história é possível encontrar relatos...
ATOR 3 – Documentados!
ATOR 4 – ...sobre a existência e presença de vampiros entre nós.
ATOR 1 – O que nos leva a conclusão de que o vampiro é um assunto eternamente...
ATOR 2 – Batido!
ATOR 3 – Ordinário!
ATOR 4 – Comum!
ATOR 1 – É... tá mais pra coisa do xarope mesmo.
ATOR 2 – Isentos, portanto, de qualquer tentativa de sermos originais, vamos ao que interessa!
TODOS – Como identificar e exterminar um vampiro!
ATOR 3 – Porque um ser que durou tanto tempo vai deixar de existir de uma hora para a outra? Não vai, né, gente?
ATOR 1 – Eles podem estar em qualquer lugar!
ATOR 4 – De dia, de noite ou na hora do cafezinho!
ATOR 2 – Loucos para chupar o seu sangue! (Faz cara de vampiro e tentar morder o pescoço do ator ao lado, brincando)
ATOR 1 – Ai, me deixa!
ATOR 3 – Mas aí é que está o problema! Nem todo vampiro é do tipo que chupa sangue!
ATOR 2 – Tem outros mais fogosos que gostam de...
ATOR 3 – Cala a boca!
ATOR 4 – E é para isso que estamos aqui! Para ajudá-lo a se prevenir...
ATOR 2 – E a se remediar!
ATOR 4 – ...do ataque de um nosferatu!
ATOR 1 – Primeira classe de vampiro: O Evocador!
ATOR 3 – O Evocador é um precursor do vampiro, um antecessor, um tipo de morto-vivo muito comum no século XII, que costumava matar suas vítimas simplesmente pronunciando seus nomes.
ATOR 4 – Poderoso!
ATOR 2 – Nos dias atuais ele costuma se manifestar com mais frequência através de um sargento ou de um major, aparecendo para jovens de alto poder aquisitivo, durante a convocação para o serviço militar.
Simulação. No quartel do exército.
MAJOR – Atenção para a lista dos convocados para o exército! Serão nove meses de privações, sofrimento e homossexualismo clandestino! (Pausa.) Thor de Oliveira Batista!
Thor grita e cai morto no chão.
MAJOR – Neymar da Silva Santos Júnior!
Neymar grita e cai morto no chão. O ator 4 – que está de pé e amedrontado – fala para o público:
ATOR 4 – Mas se você conseguir identificar um Evocador a tempo, controle-se! Existem algumas soluções para se escapar desse terror! Número 1!
Os atores que estavam caídos se levantam e a cena volta ao início.
MAJOR – Thor de Oliveira Batista!
THOR (fazendo sinais com as mãos e falando com dificuldade) – Eu sou surdo!
MAJOR – Deficiente! Cortado!
ATOR 4 – Número 2!
MAJOR – Neymar da Silva Santos Júnior!
NEYMAR (tirando um fone do ouvido) – Oi? É comigo? Eu estava ouvindo meu Ipod.
MAJOR – Delinquente! Cortado!
ATOR 4 – Número 3!
MAJOR – Pedro Lanza Restart!
ATOR 4 (tirando um fone do ouvido) – Desculpe, eu estava ouvindo...
MAJOR – Foda-se! Cortado!
ATOR-NEYMAR – Mas infelizmente isso não mata o Evocador. A única maneira de fazê-lo é cortando-lhe a cabeça e queimando seu corpo.
Ator-Thor tira uma tesoura do bolso, Ator 4 tira uma caixa de fósforos e os dois correm em direção ao Ator-Major que sai correndo. Fim da simulação.
ATOR 1 – Próxima classe de vampiro: o Faminto! Ou “Goela Ávida”!
ATOR 2 – Um dos vampiros mais antigos relatados!
ATOR 4 – Escritos antigos da Grécia antiga já falavam desse antigo vampiro que se tornou famoso por uma antiga prática antropofágica.
ATOR 3 – O antropofaguíssimo. Ou canibalismo. Ou a prática de comer pessoas. Porque chupar o sangue de alguém pode custar caro. Mas comê-lo todo, não tem preço.
ATOR 1 – Mas o que mais chamava a atenção nesse vampiro serelepe é o fato de ele ser um morto vivo que as pessoas não sabiam que havia morrido!
ATOR 2 – Por isso ele podia estar do seu lado sem você saber que se tratava de um.
Os atores se olham desconfiados.
ATOR 4 (quebrando o clima) – Atualmente, o Faminto pode ser encontrado em boates e casas de swing. Mas vamos tomar o exemplo da boate.
Simulação. Uma mulher sedutora numa boate. Música. Os outros estão dançando.
MULHER (se aproximando de um deles) – Oi, gato. Tem fogo?
HOMEM 1 (surpreso e um pouco tímido) – Fogo? É... bem... eu... acho que...
MULHER – Que tal a gente cortar essas preliminares e sairmos daqui juntinho agora, hein?
HOMEM 1 – Nossa! Claro! Na minha ou na sua?
MULHER – Na minha...
HOMEM 1 – (querendo se enturmar) Demorô! (fala para o amigo, ao lado) Aí, acho que vou traçar essa garota!
HOMEM 2 (sem ouvir direito) – O quê?
HOMEM 1 (falando mais alto) Acho que vou comer essa garota!
HOMEM 2 (transformando-se) – Não se eu te comer primeiro!!! (ataca o Homem 1, que grita)
MULHER 2 – Ahhh!!! É aquele cara que morreu no acidente de carro!
Fim da simulação.
ATOR 2 – É... com um Goela Ávida não se brinca. A melhor solução é deixar o braço pra ele e sair correndo.
ATOR 3 – Outro tipo bem peculiar de vampiro é o Appesart. O nome é bacana, não é?
ATOR 4 – Mas muito cuidado com ele!
ATOR 1 – Figurinha tarimbada da Europa do século XIV, esse desagradável ser maligno atacava principalmente as pessoas que tinham cometido alguma prática que atentasse aos bons costumes daquela sociedade.
ATOR 4 – Um moralista, né?
ATOR 2 – Se você, por exemplo, desvirginasse uma garota e não assumisse um compromisso sério depois, ele aparecia pra você.
ATOR 1 – Se você bebesse à noite inteira e esquecesse da família, ele aparecia pra você.
ATOR 3 – Se você faltasse a missa mais de 5 vezes, ele aparecia pra você.
ATOR 4 – Mas ele não aparecia de um jeito qualquer.
ATOR 2 – Ele pulava nas suas costas e chupava seu sangue. Bem devagarinho... e só saia de lá quando você consertasse a bobagem que fez. Por isso ele se chamava Appesart.
Silêncio. Constrangimento.
ATOR 2 – Enfim... vamos à simulação!
Simulação. Numa estrada. O Appesart 1 está escondido. Passa um transeunte. O Appesart 1 pula nas suas costas.
TRANSEUNTE 1 – Ai, meu Deus, um Appesart!
APPESART 1 – Ah! Desvirginando garotas inocentes, não é? Agora só saio daqui quando pedi-la em casamento!
TRANSEUNTE 1 – Me desculpe! Estou arrependido! Vou pular agora mesmo do precipício e me matar!
APPESART 1 – Não!!!
Saem correndo. Aparece o Appesart 2, que também estava escondido. Entra outro transeunte. Appesart 2 pula em suas costas.
TRANSEUNTE 2 – O que é isso?!
APPESART 2 – Cristão pecador! Andou faltando a igreja, não é?
TRANSEUNTE 2 – Porque eu me converti, seu idiota! Agora sou budista!
APPESART 2 – Bu o quê?
TRANSEUNTE 2 – Ah, some daqui!
APPESART 2 – Porra, sacanagem...
Fim da simulação.
ATOR 3 – Perceberam como se faz, né?
ATOR 2 – São duas maneiras ótimas de afugentar um Appesart.
ATOR 1 – Mas para nem tudo na vida há uma solução.
ATOR 4 – Vamos ao último tipo de vampiro de hoje: a ex-namorada depressiva, ou ex-namorado canalha.
ATOR 3 – Presente em todas as eras da humanidade, no ocidente, no oriente ou no polo norte, esse tipo de vampiro...
ATOR 2 – Demônio!
ATOR 1 – Espírito!
ATOR 4 – Espírito!
ATOR 3 – ...é um dos mais difíceis de se exterminar porque ele pode aparecer nos lugares em que você menos deseja e nas horas mais incômodas.
ATOR 4 – Um ser onipresente e onisciente, que sabe como ninguém como sugar suas energias. Uma mistura de Mestre dos Magos com Sérgio Malandro.
ATOR 1 – Uma coisa que não é de Deus.
Simulação. Num quarto. Um casal se pegando. O telefone toca.
ELA (beijando) – Não atende.
ELE – Eu preciso.
ELA – Não precisa!
ELE – Já tocou três vezes. Deve ser importante. (olha o celular) Número restrito... (atende) Alô?
EX (chorando convulsivamente) – Ricardo!!
ELA – Quem é?
ELE – Ai, meu Deus...
EX – Ricardo, sou eu!!
ELE – Eu sei, Aline...
EX – Ricardo, porque você fez isso comigo?!!
ELE – Fez o quê, Aline?
EX – Terminou comigo!!
ELE – Aline, isso foi há cinco anos!!
EX – Eu sei!!
ELA – Ricardo, desliga!
ELE – Calma... (para a ex) Aline, são 3 horas da manhã, vamos conversar depois, tá?
EX – Não, eu quero agora!
ELE – Eu estou indo dormir, já é tarde, amanhã eu tenho trabalho!
EX – Mentira!! Você está com uma loira de lencinho cor de rosa que eu sei!!
ELE – Calma aí... como você sabe?
EX – Porque eu estou no seu armário!
Ela aparece.
ELE e ELA – Ahhhh!!!
Um dos atores, ainda na simulação, fala para o público.
ATOR 1 – Mas se isso acontecer, tente não se desesperar! Mantenha a calma, respire fundo... e invoque!
ELE (gritando para fora) – Appesart, ataque!!
Um dos atores entra em cena e pula nas costas da Ex. Ela grita.
ATOR 2 – O problema é que tudo acontece sobre um ponto de vista.
ATOR 3 – E se na sua cabeça você é a vítima, na cabeça de outro você pode ser o vampiro.
ATOR 4 – E para todo vampiro, há sempre um caçador.
ATOR 1 – Que também pode ser um vampiro...
A Ex volta a gritar dentro da simulação.
EX – Ahh, canalha!!!! Faminta, ataque!
Ela (a namorada atual) se transforma numa vampira e ataca Ele. Todos gritam. A luz desce em resistência até o blecaute.

_________________________


SHEILA CURTIU ISSO.
De Diego Molina.
Texto escrito para o Clube da Cena – Semana 1: Roberto Carlos – “Minha fama de mau”.
***
Local para casais se resolverem. Ele, feio, fanho e soberbo. Ela, linda, jovem e alterada. Outra mulher, de óculos, está diante deles.
ELA – Tá uma merda, doutora!
DOUTORA – Desenvolva, por favor.
ELA – Ele não está mais nem aí para a nossa relação! Ele discorda de tudo o que eu digo! Nega tudo o que eu peço!
ELE – Isso não é verdade.
DOUTORA – Deixe ela se expressar, Sr. Egídio. Sra. Shirlei, vamos trabalhar com exemplos, sim?
ELA – A senhora quer exemplos? Pois eu vou dar à senhora. Essa semana, por exemplo. Passei a semana inteira chamando ele para ir comigo ao cinema, e sabe o que ele me diz?
DOUTORA – O que o senhor diz, Sr. Egídio?
ELE – Não.
ELA – Depois eu chamo ele para ir à praia comigo. E sabe o que ele me diz?
DOUTORA – O que o senhor diz, Sr. Egídio?
ELE – Não.
ELA – Aí eu começo a tentar raciocinar com a cabeça de homem, né? Pergunto: quer ir ao Engenhão comigo, ver um jogo de futebol? E sabe o que ele me diz?
DOUTORA – O que, Sr. Egídio?
ELE – Digo que não.
DOUTORA – O senhor não gosta de sair de casa?
ELE – Gosto sim.
DOUTORA – E gosta de ir aonde?
ELE – Ah... à praia, ao cinema, no futebol... essas coisas.
ELA – Tá vendo, doutora? Está insuportável!
DOUTORA – E desde quando isso tem acontecido?
ELA – Não sei... De uns tempos pra cá ele vem me contrariando em tudo.
ELE – Isso também não é verdade. Eu te contrario desde que nos conhecemos.
ELA – Ah, isso é mesmo, doutora! Sabe há quanto tempo estamos juntos? Há mais de dez anos! Dez anos de namoro me contrariando diariamente!
DOUTORA – E vocês nunca pensaram em casamento?
ELA – Claro que sim!
DOUTORA – Quando foi que ele te pediu em casamento?
ELA – Fui eu quem pedi! A princípio ele não parecia ter se oposto... mas no dia do casamento... Ai, doutora, que constrangimento! A gente no altar... Toda a família reunida... amigos... A igreja toda florida! Aí o padre olha pra ele e pergunta se ele aceita se casar comigo. E sabe o que ele diz, doutora?
ELE – Sim.
ELA – Ah!!! Você não disse “sim”, você disse “não”!!!
ELE – Eu quis dizer que “sim, ela sabe o que eu disse”.
DOUTORA – Ele tem razão...
ELA – Não é possível, ele só pode ter outra!
DOUTORA – Sr. Egídio, o senhor tem uma amante?
ELE – Não, doutora.
ELA – Ele está dizendo isso pra me contrariar!
DOUTOR – Sr. Egídio, para que possamos evoluir nesta conversa é importante que ambas as partes sejam extremamente sinceras. Por isso, vou repetir: o senhor tem uma amante?
ELE – Sinceramente?
ELA – Sim!
ELE – Não tenho, não.
ELA – Ai, tá vendo?!?
DOUTORA – E porque o senhor faz isso?
ELE – Eu não sei. Simplesmente dá uma vontade de dizer não pra tudo o que ela diz. É mais forte do que eu.
ELA – Nossa vida virou um programa de auditório, com aqueles jogos entre os participantes. Eu passo o dia inteiro pensando em maneiras de ele me dizer um sim e ganhar a disputa. Por exemplo: Egídio, você gosta de me contrariar? Aí ele primeiro responde que não. Depois eu pergunto: você tem certeza disso? Aí ele diz que sim! Viva? Não! Porque ele já tem uma resposta preparada!
ELE – É que nesse caso, se eu dissesse “não” eu estaria retificando o meu estado de dúvida e consequentemente concordando com o que ela disse. É uma maneira de dizer “não” com um “sim”.
DOUTORA – É... esse é realmente um caso complicado. Bem, então pelo o que eu entendi vocês vieram aqui para tentarem uma reconciliação.
ELA – Exato, doutora.
DOUTORA – E a senhora está disposta a não mais terminar com ele?
ELA – Claro que não, doutora! Eu amo esse homem! Não posso viver sem ele! É ele quem quer terminar comigo.
ELE – Não sou eu... é o tempo...
ELA – Porra, Egídio!!
DOUTORA – Entendo. Bem, nesse caso acho que podemos resolver as coisas de uma maneira bem positiva.
ELA – Como assim, doutora?
DOUTORA – Eu tenho a solução para o problema de vocês.
ELA – Está falando sério?
ELE (irônico) – Não, ela está contando uma piada pra...
ELA – Cala a boca. Doutora, fala sério.
DOUTORA – E é bastante simples. A senhora já reparou como você reage a cada negativa dele?
ELA – Não.
ELE – Você sabe sim...
ELA – Cala a boca!!! (Se dá conta.) Sim! Sim! Eu sei!
DOUTORA – Então... tudo o que a senhora tem q fazer é não dar valor às negativas dele. Não se irritar.
ELE (mexido) – Ah, mas que ideia idiota!
ELA (curiosa) – Ham...
DOUTORA – Sabe quando você entra no facebook e de cada 10 comentários que você lê 9 são coisas idiotas, sem relevância e altamente egóicas, que não procuram interação social nenhuma e são apenas uma válvula de escape diante de tantas frustrações e insatisfações?
ELA – Ham...
DOUTORA – Ao invés de você “curtir” aquelas bobagens todas, clique no botão “caguei”.
ELA – Mas esse botão não existe, doutora.
ELE – Essa mulher é uma charlatã! Não ouça o que ela diz, Sheila!
ELA – Quieto.
DOUTORA – Então você tem que criar um! Na sua mente! Sempre funciona comigo!
ELA – Caralho! Que foda!
ELE – Que foda o quê? Essa é coisa mais idiota que eu já ouvi!
ELA – Egídio, pelo amor de Deus, você quer parar com...
DOUTORA (pigarreando) – Ram ram.
ELA – Caguei.
DOUTORA – Isso! Tente de novo!
ELE – Cagou nada! Ela tá furiosa por dentro! É da boca pra fora!
Ela olha para Ele, sorrindo, sem dizer nada.
ELE – Que cara é essa? Não vai dizer nada?
ELA (sorrindo) – Não. Caguei.
ELE – Sheila, o que está acontecendo? O que essa mulher fez com você?
DOUTORA – Ela está se libertando, Sr. Egídio!
ELA – Eu entendi, Egídio! Eu entendi!
ELE – Não entendeu porra nenhuma!
ELA – Então tudo bem. Talvez eu não tenha entendido mesmo. Não importa. Eu tô bem assim.
ELE – Não, isso não está acontecendo! Você tem que se irritar comigo! Eu sou importante pra você! Eu existo! Preciso que você me perceba!
ELA – Estou livre da sua coerção! Da sua ditadura do não! Eu tentei de tudo durante esses dez anos! Tudo! Propus coisas que jamais proporia a nenhum homem! Coisas que me desagradariam, que me deixariam constrangida, infeliz. Tudo em troca de um pouco de sim. Só um pouquinho de sim. E agora finalmente eu descobri um jeito de não me submeter a você! Egídio, eu estou cagando pra você!
ELE – Sheila, me perdoe! Não faça isso comigo! Não me ignore! Não posso viver sem sua atenção! Sheila, eu te amo!
ELA (comovida) – Você... me ama?
ELE – Sim, Sheila, eu te amo! Não consigo imaginar a vida sem você! Por favor, me perdoe!
ELA – Me ama de verdade?
ELE – Sim! De verdade!
ELA – E você concorda comigo quando eu te pergunto se você me ama esperando que você diga sim?
ELE – Sim, Sheila, sim! Eu concordo com você!
ELA – Ah, meu amor, eu também te amo!
Eles se beijam.
ELA – Doutora, doutora! Muito obrigado! Você salvou a nossa relação! Como eu posso te agradecer?
DOUTORA – Bem, primeiro você pode me parar de me chamar de doutora. Eu não terminei nem o ensino médio, pra falar a verdade. O que não me impediu de ler alguns bons livros de auto-ajuda.
ELA – Ah, claro...
DOUTORA – É que vocês entraram tão nervosos e discutiam tanto que achei que seria melhor a gente conversar um pouco antes de começarmos. Mas agora chega, né? Isso aqui não é um consultório de análise, é uma casa de swing. E aí, vamos trepar ou não?
ELA (para Ele) – A que ponto eu cheguei. Fui capaz de te trazer pra uma casa de swing, mesmo sabendo que esse tipo de coisa me causa nojo!
ELE – Meu amor, nós não precisamos...
ELA – Eu tinha certeza que até pra isso você diria não. E foi o que você disse. Mas agora preciso saber se você está realmente curado...
ELE – Sheila, mas você...
ELA – Não, Egídio! Eu vou encarar essa! Egídio... vamos... vamos fazer... um... sexo a três?
ELE – Bem, eu...
ELA – Oh, não, Egídio!
ELE – Eu digo sim, meu amor! Tudo por você! Tudo pra provar que eu mudei! Sim, Sheila! Vamos fazer um sexo a três!
DOUTORA – Finalmente!
A doutora parte pra cima de Ela e começa a beijar seu pescoço. Ela está nervosa e incomodada, mas cede.
ELE (Rindo, vitorioso, para o público) – As coisas que um homem tem que fazer pra convencer uma mulher a fazer um ménage...
FIM.
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O CUCO ADORMECIDO LTDA.

de Diego Molina.

Personagens:

Mathias – homem de meia idade, inofensivo, farmacêutico desempregado.

Verônica – mulher calma e segura, boa dicção, vendedora experiente.

***

A ação se passa nos jardins de um cemitério. É dia. Mathias observa inconsolado o túmulo recém sepultado de sua mãe. A cerimônia acaba de se encerrar. O diretor pode optar por colocar alguns atores saindo do cenário após cumprimentar Mathias até que só restem os dois personagens da trama. Ambos vestem preto.

VERÔNICA – Sr. Mathias? (Ele não responde.) Ricardo Mathias?

MATHIAS (Acordando de seu mundo.) – Sim?

VERÔNICA – Acho que o senhor não me conhece. Meu nome é Verônica.

MATHIAS (Abatido, mas sem perder a educação.) – Oi.

VERÔNICA – Eu sei que esse pode não parecer o melhor momento para isso... mas o senhor teria alguns minutos para uma conversa?

MATHIAS – Alguma coisa errada?

VERÔNICA – Não, não. Absolutamente. Mas eu tenho uma oportunidade irrecusável para oferecer ao senhor.

MATHIAS (Não acreditando na situação.) – Desculpa... A senhora está querendo me vender alguma coisa, é isso? Minha querida, eu acabei de enterrar minha mãe!

VERÔNICA – Eu entendo. Mas a minha experiência me diz que são nos piores momentos que se encontram as melhores soluções. Talvez porque pior do que isso não fique, não é? (deixando escapar uma risadinha.)

MATHIAS – Eu não acredito nisso. (Vai saindo.) Com licença.

VERÔNICA – O senhor não pode ter filhos.

MATHIAS (Parando, surpreendido.) – Como você sabe disso?

VERÔNICA – Não tem filhos porque não pode tê-los; perdeu o pai num acidente de carro quando era jovem; foi demitido da farmácia onde trabalhava; e ia abrir uma lanchonete com sua mulher antes de ela te trocar pelo garoto da chapa. Eu sei muitas coisas sobre você. Posso chamá-lo de você, não posso?

MATHIAS – Olha só, isso aqui é alguma brincadeira? Porque se for, é melhor parar senão eu chamo a polícia!

VERÔNICA (Um pouco debochada.) – A polícia? Sob que acusação?

MATHIAS – A senhora não tem o direito...

VERÔNICA – Controle-se, homem! (Quase rindo.) Acredite, você não sabe com quem está falando.

MATHIAS – Vai me ameaçar agora?

VERÔNICA – Mathias, quanto lhe vale ser surpreendido? Eu digo positivamente...

MATHIAS – O quê?

VERÔNICA – Você tem acumulado uma série de surpresas desagradáveis na sua vida, como você sabe que eu sei. Agora... Quanto custaria a você receber uma boa surpresa?

MATHIAS – Eu não estou entendendo.

VERÔNICA – Esse é o cartão da minha empresa.

Tira do bolso e entrega-o a Mathias.

MATHIAS (Lendo.) – “O cuco adormecido LTDA”.

VERÔNICA – O nome é estranho, mas a causa é nobre. Somos especializados em revelar surpresas extraordinárias no momento em que as pessoas menos esperam. Negócio único no mundo. Clientes altamente selecionados. Mas preciso te dizer que você provavelmente não irá encontrar nada sobre meu nome ou sobre a empresa no Google. Uma das nossas maiores qualidades é a discrição.

MATHIAS (Tentando não revelar a curiosidade.) – Não estou interessado.

VERÔNICA – Talvez algum dia você saiba da informação que temos para te dar. Talvez saiba daqui a uma semana; talvez saiba daqui a um ano. Mas talvez saiba quando já seja tarde demais. É não é justamente essa medida de tempo que nos interessa, Mathias?

MATHIAS – Que tipo de informação você está falando?

VERÔNICA – De qualquer tipo. Mas grande o suficiente para lhe tirar dos eixos, isso eu lhe garanto! Temos uma equipe muito boa que passa um tempo considerável do ano procurando pessoas como você: infelizes e cegos o suficiente para não encontrarem a solução bem debaixo do nariz. Resumindo a ópera: somos pesquisadores.

MATHIAS (Num nervoso crescente.) – Escute aqui... Verônica, Camila, Tábata ou sei lá qual for o seu nome... Já ouvi falar de muita gente que caiu no conto do vigário. Pessoas que perderam o pouco que restava em suas vidas para criaturas como você, criaturas insensíveis e sem escrúpulos, que ficam rondando os cemitérios da cidade como urubus a procura da carniça, pronta pra dar um golpe qualquer. Mas eu vou te dizer uma coisa, meu bem: esse idiota você não pega! (Vai saindo de cena.)

VERÔNICA – E se eu disse que você está rico?

Mathias para.

MATHIAS – Que garantias você me dá?

VERÔNICA – Nenhuma. Mas é isso torna a coisa muito mais excitante, não acha? Esse vão que fica entre o trem da felicidade a plataforma do desespero é realmente fascinante! (Se percebendo.) Gente, tô muito inspirada hoje!

MATHIAS – Mas se for verdadeira essa informação de que estou rico eu não preciso fazer nada!

VERÔNICA – Isso não é verdade, mas entendo o que está falando.

MATHIAS – Se eu tiver uma herança a receber é só contratar um advogado. Se eu tiver ganho na loteria é só pegar o dinheiro na Caixa Econômica. Se meu apartamento supervalorizou é só verificar junto à imobiliária. Sua informação não vale mais nada!

VERÔNICA – Primeiro: a essa sua listinha de possibilidades eu poderia juntar mais um milhão de situações. E qual delas seria? Segundo: esses exemplos que você deu foram péssimos. Desde quando apartamento no Méier vale alguma coisa? Terceiro: se fosse algo tão óbvio assim eu não teria lhe dado a informação. E quarto: você pode até encontrar a fonte. A questão é: quando? Lembrando que um bilhete premiado – caso você ainda o tenha e saiba onde ele está – tem prazo de validade. E aí, Mathias? Quer pagar quanto?

MATHIAS – De quanto estamos falando? Dez mil? Cem mil? Um milhão?

VERÔNICA – 80%.

MATHIAS – De quê?

VERÔNICA – Do tesouro. Do que você receber.

MATHIAS – Vocês estão loucos?

VERÔNICA – Porra, você nem sabe quanto é!

MATHIAS – Sim, justamente!

VERÔNICA – Cara, é um dinheiro que você não está contando, que vai cair do céu. O que vier é lucro!

MATHIAS – Lucro pra quem? Pra vocês, né? E põe lucro nisso! Que merda é essa, a mais-valia?

VERÔNICA – Merda é caralho, olha a baixaria, que eu não sou filha da puta! Porra, Mathias... Você tem que admitir que sustentar uma organização desse nível custa caro. Nós não somos nenhuma ONG assistencialista!

MATHIAS – Você não disse que a causa era nobre?

VERÔNICA – Mathias, existe picanha nobre, bairro nobre, família nobre, Dudu nobre. É um adjetivo muito amplo. E vai dizer que essa graninha não vai te ajudar?

MATHIAS – Ah, mas se for mil reais, 20% não é nada.

VERÔNICA – Eu disse que eram mil reais? Onde você ouviu eu dizer que eram mil reais? Hein? Alguém fica rico com mil reais? Eu estaria aqui falando com você por causa de mil reais?

MATHIAS – Tá, tá bom. (Pausa.) Eu aceito. Mas e se eu não te der os 80%?

VERÔNICA (Séria.) – A gente te castra.

MATHIAS – O quê?!

VERÔNICA (Se divertindo.) – Brincadeira. Não, porra, você vai assinar um contrato... Daí se você não pagar nossos advogados caem em cima de você. (Rindo.) Ou te castram mesmo! Organização secreta tem dessas coisas! (Dando um papel e uma caneta para ele assinar.) Assine aqui, por obséquio.

Mathias suspira por um instante e assina.

MATHIAS – Pronto. E agora?

Verônica entrega um jornal a Mathias.

MATHIAS – O que é isso?

VERÔNICA – O jornal da semana passada. Abre aí na página 12.

Ele folheia o jornal.

MATHIAS – E aí?

VERÔNICA – Lê a manchete!

MATHIAS – “Milhares de brasileiros têm dinheiro esquecido em bancos”. Calma aí... é isso? Eu tenho dinheiro esquecido num banco?

VERÔNICA – É.

MATHIAS – Uma fortuna?

VERÔNICA – Meus sócios dizem que é uma quantia bem razoável.

MATHIAS – Você acha que eu poderia ter deixado uma fortuna num banco e ter esquecido?

VERÔNICA – Acho. Porra, tá no jornal!

MATHIAS – Mas você não acha que isso não faz sentido algum?

VERÔNICA – É verdade. Mas eu acabei de pisar numa merda de cachorro e tem uma placa enorme na entrada dizendo que é proibido entrar animal. Você acha que isso faz sentido? (Pausa.) Sem falar no meu tio Jorge, que morreu de soluço.

MATHIAS – Isso é alguma brincadeira?

VERÔNICA – Não, ele morreu mesmo, foi um constrangimento. E aí, quer passar no banco agora ou mais tarde?

Luz desce em resistência.

FIM
_________________________
MEU PRIMEIRO CASO - de Diego Molina

Cenário: um restaurante italiano discreto.
Personagens: DETETIVE; MARIDO; MULHER.

***

Um homem e uma mulher num restaurante pouco popular na hora do almoço. Estão sentados em mesas diferentes. Ele, o detetive, está de óculos escuros e chapéu. Está a serviço, espionando a mulher. Para isso finge estar lendo um jornal e tem à disposição alguns apetrechos tecnológicos, entre eles um discreto “ponto” escondido em uma das orelhas, por onde ouve as instruções de seu cliente (o marido). Ela parece estar nervosa e com cara de quem estava chorando. Também usa óculos escuros. Há um prato de espaguete ao sugo em sua mesa, intacto.
MARIDO (OFF) – Alguma novidade?
DETETIVE (Falando discretamente para um dos botões de sua camisa – um microfone) – Nada.
MARIDO (OFF) – Porcaria!
DETETIVE – Eu disse que ela estava limpa.
MARIDO (OFF) – Quero vê-la de novo.
O detetive tira uma caneta-filmadora do bolso da camisa e a coloca em cima da mesa, apontando-a para a mulher.
MARIDO (OFF) – É... continua sozinha.
DETETIVE – Foi o que eu disse.
O detetive clica na caneta e a guarda.
DETETIVE – Estou aqui há mais de uma hora e ninguém apareceu.
MARIDO (OFF) – Espere mais uma hora!
DETETIVE – Faz uma semana que estou vigiando ela e ainda não achei nada que...
MARIDO (OFF) – Você está sendo pago, não está?
DETETIVE – Sim, mas...
MARIDO (OFF) – Então faça o eu digo! Tenho certeza que ela está me traindo! Nas últimas semanas tem se comportado de maneira muito estranha. Sabe o que ela quis fazer comigo da última vez que tentamos transar?
DETETIVE – Nem imagino.
MARIDO (OFF) – Um fio-terra!
O detetive solta uma gargalhada. A mulher olha para ele. Ele disfarça virando a página do jornal, mostrando que estava lendo a sessão de quadrinhos.
MARIDO (OFF) – Um fio-terra! Você sabe o que é isso?
DETETIVE – Ouvi falar. Escute, acho que ela está desconfiando de algo. Melhor eu... Espere! Alguém está ligando pra ela!
A mulher tira seu celular da bolsa. Ela fala baixo e tenta disfarça a conversa com a mão. Não é possível entender o que ela diz, mas está com uma fisionomia abalada.
MARIDO (OFF) – O que ela está falando? O que ela está falando?
DETETIVE – Não consigo escutar.
MARIDO (OFF) – O quê?
DETETIVE – Eu disse que não consigo...
MARIDO (OFF) – Eu entendi, imbecil! Trate de dar um jeito nisso! Quero saber o quê e com quem ela está falando.
DETETIVE – Ok, vou colocar uma escuta na mesa dela. Acho que tenho alguma coisa aqui na minha maleta.
O detetive se abaixa para fuçar a maleta que está em baixo da mesa. Enquanto isso ouve-se a mulher falando ao telefone. O detetive não a ouve.
MULHER (Rompendo a discrição da conversa ao telefone.) – Ele não me ama mais, Malú! Tem agido de maneira muito estranha nas últimas semanas, não quer mais transar... Até tentei coisas novas pra ver se ele se animava, mas nada! Ele só pode estar me traindo!
DETETIVE (Ainda abaixado.) – Achei! É um micro-gravador... minúsculo. Vou inventar um pretexto para ir até a mesa dela e largá-lo por lá.
MARIDO (OFF) – Ótimo! Vamos desmascará-la hoje! Senão eu não me chamo Carlos Augusto!
O detetive se prepara para ir até a mesa da mulher.
MULHER (Ainda ao telefone.) – É isso mesmo o que eu vou fazer, amiga! Se ele pode eu também posso! Pode deixar. Vou agarrar o primeiro homem que encontrar!
Ela desliga o telefone com vigor. O detetive se aproxima da mesa.
DETETIVE (Para a mulher.) – Com licença, poderia me emprestar o s...
Ela olha para o detetive, agarra-o e beija-o com força.
MARIDO (OFF) – E aí? Conseguiu?
DETETIVE (Para a mulher.) – O que foi isso?
MULHER – Seu bilhete premiado. Venha, senta comigo.
DETETIVE – Mas, eu...
Ela tira rapidamente o chapéu e os óculos do detetive.
MULHER – Ainda por cima é gatinho!
Ele toma seus acessórios das mãos da mulher e os veste, apressadamente.
DETETIVE – Está maluca?
MULHER – Estou. Para a sua sorte!
MARIDO (OFF) – É o amante?? Ele chegou??
DETETIVE (Para a mulher, engrossando e disfarçando a voz.) – Meu bem... você é bem direta, não é?
MULHER – E você é tudo de bom!
MARIDO (OFF) – Eu sabia, eu sabia!
MULHER – Não saia daí, coisa linda! Vou retocar a maquiagem e já volto. (Ela se levanta. Pausa sensual.) Garanto que não vai se arrepender. (Sai.)
MARIDO (OFF) – Eu disse, não disse? E aí, como ele é?
DETETIVE – O homem é um garanhão.
MARIDO (OFF) – Ah, meu Deus! Meu casamento está perdido!
DETETIVE – Bem, acho que resolvemos o caso, não é?
MARIDO (OFF) – Não! Preciso de uma prova.
DETETIVE – Mais uma? Não ouviu eles se beijando?
MARIDO (OFF) – Quero pelo menos uma foto dos dois, ok?
DETETIVE – Não.
MARIDO (OFF) – Escute aqui: ou você me consegue a porra da foto ou nada de pagamento, está entendendo?
DETETIVE – Mas não foi isso que nós...
MARIDO (OFF) – Ou melhor, me consegue um vídeo! Pro caso deu querer processá-la.
DETETIVE – Não dá!
MARIDO (OFF) – Por quê?
DETETIVE – Olha só... do lugar onde eu tô... não vou conseguir muita coisa...
MARIDO (OFF) – Não tem problema! Dez segundinhos só! Mas quero uma cena bem sacana!
DETETIVE – E essa agora! (Tempo.) Tá, tudo bem... vou tentar... Mas não garanto muita coisa não, tá? Ele vai ficar de costas...
MARIDO (OFF) – Não importa! Mas filma os dois se beijando, entendeu?
DETETIVE – Entendi!
O detetive corre para sua mesa e coloca sua caneta-filmadora apontada para a mesa da mulher. Ainda não a liga. Afunda bem seu chapéu na cabeça, puxa a gola da camisa e tenta se esconder ao máximo nas roupas.
MARIDO (OFF) – Liga a câmera!
DETETIVE – Calma!
Ele liga a câmera. A mulher volta à cena.
MARIDO (OFF) – Cadê o safado?
DETETIVE (Fora do alcance da câmera.) – Foi... lavar as mãos... Pronto, chegaram.
Os dois voltam à mesa da mulher. Ele se esforça pra ficar de costas pra câmera.
MULHER – Esperei por um homem como você a vida toda!
DETETIVE (Disfarçando a voz.) – Pois é, eu...
Ela o puxa e o beija ardentemente. Ele aceita, assustado.
MARIDO (OFF) – Ah, desgraçada! Estou vendo tudo! É verdade!
Os dois param para respirar.
MULHER (Ofegante.) – E olha... que só o conheço... há dois mi...
Ele a puxa para um beijo, antes que ela complete a frase.
MARIDO (OFF) – Jesus, parecem adolescentes!
Nova pausa para respirar.
MULHER – Menino, que fogo, hein?
DETETIVE (Disfarçando a voz.) – É, comigo é assim, vacilou o Paulão do Açougue pegou!
MULHER – Hmmm, Paulão do Açougue, como você fala grosso! Agora me deu vontade falar um monte de besteira no seu ouvido...
Ela se prepara para avançar no ouvido que tem o “ponto”. Ele vira bruscamente.
DETETIVE (Disfarçando a voz.) – Esse não! Tá inflamado!
Ela vira sua cabeça e começa a sussurrar em seu outro ouvido, ao mesmo tempo em que uma de suas mãos parte pra coxa dele. O detetive, finalmente, se deixa levar pela situação e se excita, de verdade. Sem querer, deixa escapar uma frase com sua voz normal.
DETETIVE – Meu Deus, que mulher é essa...
MARIDO (OFF, achando que foi um comentário do Detetive, que supostamente estaria assistido a cena.) – Ela é fogo, rapaz! Tinha que ver antes de nos casarmos!
O comentário do marido assusta o detetive que interrompe o momento com a mulher e sem querer esbarra uma das mãos no prato de espaguete.
DETETIVE (Disfarçando a voz.) – Desculpe, eu...
MULHER – Calma... deixa que eu limpo pra você.
Ela limpa a mão do detetive, suja de molho, com um guardanapo, de maneira bem sensual.
MULHER – Mas agora chega, vamos parar por aqui.
DETETIVE e MARIDO (OFF) – Ufa!
MULHER – Vamos terminar isso no motel!
E o agarra novamente.
MARIDO (OFF) – Eu não agüento! É demais pra mim! Vou entrar aí agora mesmo e acabar com tudo!
Ouve-se um barulho de revólver sendo engatilhado.
DETETIVE – Mas o que é isso?
MULHER – Tesão, meu bem! Tesão!
MARIDO (OFF) – Parei meu carro na esquina do restaurante! Estou acompanhando o vídeo pelo laptop! Mas isso já é demais pra mim! Vou dar seis tiros nessa cadela! (Pausa.) E nesse filho da puta também!
DETETIVE – Não faça isso!
MARIDO (OFF) – Tarde demais!
MULHER – Tarde demais!
Ela o beija. O marido entra em cena.
MARIDO (Apontando a arma.) – Paulão, desgraçado!
A mulher grita.
DETETIVE (Se ajoelhando e levantando os braços.) – Não atire! Sou eu, o detetive!!
MULHER – Calmaí, você não é o Paulão do Açougue?
DETETIVE – Não! Sou detetive particular! Me chamo...
MARIDO – Julian Ramiro Velasquez. Agente do serviço secreto argentino.
DETETIVE – Mas... quem é você?
MARIDO – Fauster Von Rondon. Detetive particular 100% nacional. Tenho clientes que procuram por você há anos.
DETETIVE – Ora, não seja idiota. Não trabalho para o governo argentino. Nem sotaque eu tenho.
MARIDO – Porque é brasileiro naturalizado argentino. O que piora ainda mais a situação. Estamos monitorando seus passos desde algum tempo, e talvez nunca teríamos descoberto sua identidade, se não fosse pelo fato de que você começou a fazer pequenos serviços por conta própria.
DETETIVE – Você... você não tem como provar isso.
MULHER (Sorrindo e mudando a postura.) – Mas eu tenho.
DETETIVE – Quer dizer que você também...
MULHER – Sim. Consegui tirar uma foto sua, com a ajuda de meus óculos-filmadora, e enquanto você achava que eu fui retocar a maquiagem, enviei o arquivo para o banco de dados da central que analisou seus traços fisiológicos.
DETETIVE – Uma foto não quer dizer nada...
MULHER – Mas uma impressão digital sim. (A mulher mostra o guardanapo manchado de molho de tomate.) Desista, Julian. Sua identidade secreta já era.
DETETIVE (Canastrão.) – Desgraçados! Podem ter me descoberto, mas nunca me pegarão!
Ele saca uma arma. Suspense. Olha para os dois, e sai correndo do restaurante, no maior estilo desenho animado.
MULHER – Quer que vá atrás dele?
MARIDO – Não se preocupe. Nosso serviço termina aqui.
MULHER – Satisfeito?
MARIDO – Extremamente. Parabéns. (Oferece a mão.) Posso dizer que você passou no teste. Está contratada!

FIM
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PTP – Partido do Tesão Proibido.
de Diego Molina.
***
MANCHETE
“Americana é presa quando tentava vender neto por US$ 30 mil”.
***
PERSONAGENS:
PREGOEIRO – espirituoso; tanto importa a idade, desde que esteja bem vestido.
GAROTO de 10 anos – um garoto entre 9 e 11 anos.
SRA. SNIDER – uma senhora de 70 anos; a avó filha da puta do Garoto.
SENADOR – um homem de terno e gravata; velho, bem velho; e escroto, bem escroto.
Um ou dois seguranças para participação sem fala.
AÇÃO:
A cena se passa num leilão. A plateia serve como espaço dos compradores. Não há necessidade de atores para representá-los, com exceção do senador. Esse deve se manter discreto até sua entrada, no final da cena.
***
Luzes. No palco, atrás de um púlpito e olhando pra plateia, está o pregoeiro. Ao seu lado, amarrado e amordaçado, um garoto de 10 anos de idade.
PREGOEIRO – Muito bem, senhoras e senhores, chegamos ao penúltimo lote do nosso catálogo: um belo e alvo garotinho de 10 anos, morador da zona sul do Rio de Janeiro.
O garoto grunhe, desesperado.
PREGOEIRO (batendo com o martelo.) – Silêncio, por favor! (Para o público.) Mas antes de começar a disputa eu gostaria de chamar aqui a Sra. Margareth Snider, a avó do moleque, que fornecerá um breafing mais detalhado da peça. Sra. Snider, por favor.
Entra em cena a Sra. Snider.
SRA. SNIDER – O garoto já tá um pouquinho velho, é verdade, mas é zero quilômetro.
O garoto grunhe.
SRA. SNIDER. (para o garoto.) – Fica quieto! (Para o público.) Nem dedada levou. Rapaz extremamente carinhoso, já teve sarampo e catapora, não tem asma, chora baixinho, pratica natação e sabe todas as músicas dos comerciais da parmalate. Não tem erro: é levar e abraçar o capeta!
O garoto grunhe.
PREGOEIRO – Muito obrigado, Sra. Snider. Vamos agora ao leilão. Começando com 10 mil dólares e lance mínimo de 5 mil. Quem vai, quem vai? 10 mil dólares ali pro pedófilo de camisa laranja! Alguém dá 15 mil? Alguém? 15 mil pra senhora pedófila com boné do Restart! 20 mil? Alguém dá 20 mil? 20 mil pro senhor caquético com cara de senador! Quem dá mais, quem dá mais? 25 mil ali pro baterista do Restart! Alguém dá 30 mil? Vamos lá, gente, olha os olhinhos de Capitu do garoto. 30 mil, alguém? 30 mil dólares pro senador filho da puta! Quem dá mais, quem dá mais? Alguém? Não? Dou-lhe uma! Dou-lhe duas! Dou-lhe três! Vendido pro senador asqueroso por 30 mil dólares! Uma salva de palmas!
Palmas da plateia. O garoto grunhe.
PREGOEIRO – Muito bem, vamos então ao último lote, o momento mais aguardado da noite: uma senhora de 70 anos, moradora da zona sul do Rio de Janeiro. Mas antes de começar a disputa eu gostaria de chamar aqui o Sr. Paulinho, o neto da velha, que fornecerá um breafing mais detalhado da peça. Sr. Paulinho, por favor.
SRA. SNIDER – O quê? Como assim??
O pregoeiro tira a mordaça da boca do garoto. Ele está agora calmo e confiante, com cara de quem ri por último.
GAROTO – Seguranças, por favor.
Entram dois seguranças que agarram a velha, amarram suas mãos e colocam uma mordaça na sua boca. Ela fica ao lado do garoto: duas imagens bem parecidas.
GAROTO (com a calma de quem criou o mundo e está no sétimo dia.) – É filha da puta a velha? É filha da puta sim.
A velha grunhe.
GAROTO (para a velha.) – Calada! (Para o público.) É escrota e mercenária a velha? É escrota e mercenária sim. Se caga toda nas calças a velha? Tá toda cagada inclusive. Mas pra quem gosta da coisa, gente... tá boa demais!
PREGOEIRO – Obrigado, guri.
Um dos seguranças coloca novamente a mordaça na boca do garoto. Ele (vitorioso) e a velha (puta da vida) se olham.
PREGOEIRO – Vamos começar a disputa. Comecemos com 20 mil dólares, lance mínimo de 10 mil! Quem vai? Opa, quanto gerófilo! Um de cada vez! 30 mil pro garotão com boné da Hebe! Quem dá mais? 40 mil ali pro coroa com bengala-vibradora na mão! 50 mil! 50 mil aqui pro pregoeiro! Alguém dá 60? 60 mil então pro sujeito com a cara do Wanderley Luxemburgo! Alguém dá 70? 70? 70 mil pro senador todo babado! Alguém dá mais? Alguém? Não? Dou-lhe uma! Dou-lhe duas! Dou-lhe três! Vendida por 70 mil dólares pro senador mais escroto do Brasil! Uma salva de palmas!
Palmas da plateia. A velha e o garoto grunhem.
PREGOEIRO – Muito bem, senhoras e senhores, chegamos ao final de mais um “Leilão Proibidão”. Peço a gentileza de serem discretos ao sair, porque afinal de contas...
Um dos seguranças interrompe o pregoeiro para lhe entregar um bilhete.
PREGOEIRO – O que é isso? (Lendo.) Opa! Parece que temos um lote surpresa hoje! E para apresentá-lo eu devo chamar... o senador Tenente?
Ouve-se um tiro. Tensão no palco. Alguns instantes depois, o pregoeiro percebe que foi atingido. Cai, em silêncio, no chão, morto. Claramente morto. Luzes na plateia. O senador está de pé com uma arma na mão.
SENADOR – Pago 200 mil pelos três! O defunto é pra sobremesa! (Para os seguranças). Washinton! Betão! Pega a mercadoria! Ainda temos que passar na “Feira do Boi” pra terminar as compras. Sou escroto mas sou coerente! Para senador, Marcelo Tenente!
Blecaute instantâneo.
FIM
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